por Eliel Vieira
Colocada desta forma, simples e tosca, a questão pode parecer não ter sentido. É óbvio que devemos buscar sempre seguir a verdade, independente de alguma autoridade a sustentar ou não. Contudo, ao que tudo indica, a obviedade desta resposta parece não estar tão clara assim aos cristãos, do passado e do presente.
Fui evangelicamente ensinado desde a infância sobre a obrigação cristã de obediência às autoridades constituídas sobre nós. Quando criança este ensinamento vinha na forma de trocadilhos como, “Na escola o alfabeto é A-B-C-D; no céu é O-BE-DE-CER” ou na narração de histórias bíblicas, de personagens que venceram porque foram obedientes a aqueles que estavam “acima” deles.
Na adolescência e mocidade este ensinamento vinha com sustentação teológica mais especificada. Ser submisso às autoridades não é mais algo que, se praticarmos, seremos premiados. Não! É-nos ensinado a partir da adolescência que é impossível ser cristão e ser insubmisso. A submissão às autoridades constituídas é um dever do cristão, uma obrigação, assim como são deveres e obrigações a prática do amor ao próximo e a piedade (na verdade, estranhamente eu tenho percebido que sempre se deu atenção maior à obediência do que ao amor ao próximo nos cultos e estudos… mas isto não vem ao caso aqui).
Os ensinamentos sobre submissão às autoridades são, contudo, ponderados e relativizados. Devemos ser submissos, sim, mas não a todos! Na igreja se ensina que nós devemos ser submissos aos nossos líderes espirituais e aos nossos pastores. A obediência e a honra aos pais também é ensinada, mas pelo o que tenho evidenciado em quase duas décadas de vida cristã, este tipo de obediência é ensinado apenas em salinhas infantis de escola bíblica dominical e é apenas superficialmente comentado em datas festivas, como o dia dos pais e o dia das mães. À parte destas datas comemorativas eu sinceramente não me lembro de ter sido ensinado, do púlpito, sobre a necessidade de obediência e honra aos pais. Ensina-se mais sobre a necessidade de obedecermos aos nossos pastores, e (pasmem!) sobre a necessidade de obedecermos e nos adequarmos ao mercado capitalista (para “prosperarmos”) do que sobre obediência aos pais. Os ensinamentos citados acima como preferidos são deliciosamente convenientes para aqueles que ensinam.
Somos ensinados a obedecer às autoridades constituídas sobre nós, mas e quando estas autoridades contradizem entre si? Por exemplo, a Bíblia diz que não há problema algum em consumir alimentos consagrados a ídolos (I Co 8), mas alguns pastores dizem que isto é errado e pecado. Ou, usando um exemplo que está em discussão hoje em dia, o Estado ordena que não discriminemos os homossexuais, já a Igreja promove esta discriminação de uma forma ou de outra. Nestes exemplos temos duas autoridades diante de nós, e obedecer a uma implica necessariamente na desobediência à outra. O que fazer?
Em alguns casos existe um descompasso entre autoridade e verdade. Nem sempre a autoridade está de acordo com a verdade sobre determinado assunto. Também, nem sempre uma verdade vem de entes de autoridade – às vezes ela é óbvia. Devemos ser primordialmente submissos a qual destes entes? Devemos ser primordialmente submissos às autoridades constituídas, mesmo nos pontos de discordância delas com a verdade? Ou devemos ser submissos à verdade sempre que houver descompasso com o que as autoridades nos dizem? Se esta for a resposta, qual é então a importância das autoridades, já que podemos encontrar a verdade fora do que as autoridades nos ensinam?
A importância da autoridade na fé, dizem os cristãos católicos até hoje, está no fato de que é a autoridade (neste caso, a “autoridade apostólica”) que deve ser o juiz sobre o que é ou não verdade. Os cristãos católicos argumentam, portanto, que ao agirmos de forma submissa à autoridade da Igreja Romana necessariamente estamos de acordo com a verdade, pois é a autoridade romana que interpreta todas as proposições existentes e que define qual é a verdade sobre determinado assunto. Jesus teve irmãos de sangue? Esqueça a Bíblia. Esqueça a história. Algum clérigo, alguma vez na história disse (não com estas palavras, obviamente) que um pinto jamais poderia profanar o santíssimo ventre da mãe de Deus, logo, Jesus não pode ter tido irmãos. E ponto!
O modelo no qual a autoridade é superior à verdade é compartilhado também por parte considerável da liderança evangélica atual (obviamente eles discordam que a autoridade de Cristo esteja com os católicos, mas com eles próprios). Simplesmente obedeça, ou você estará atraindo “maldições para sua vida”.
Este modelo em que “verdade” é aquilo tudo aquilo que uma autoridade definir como “verdade” é, contudo, insustentável. Usando um exemplo bem extremo: se um padre (ou um pastor) ensinar a uma criança que ela deve manter relações sexuais com este padre (ou pastor), ela deve obedecer cegamente a estas ordens? Perceba que o ensinamento vem de uma autoridade espiritual. Se você disser que não (e não há outra resposta possível), então você está concordando que o correto e o verdadeiro não estão necessariamente relacionados a aquilo que uma autoridade diz. O correto e a verdade estão fora, acima do que as autoridades dizem e são independentes do fator “autoridade”. Usando outro exemplo, mais real e tangível: um pastor diz que não devemos comer alimentos consagrados a ídolos enquanto a Bíblia nos dá a total liberdade neste ponto (ponderando apenas para que tomemos cuidado e não escandalizemos os novos na fé). Devemos obedecer a esta ordem pastoral de abstenção de alimentos que tenham sido consagrados a ídolos? Se não, então estamos buscando o que é correto e verdadeiro a parte do que a autoridade imediata nos diz.
Esta questão “autoridade x verdade” tomou conta dos meus pensamentos nos últimos dias, quando observei alguns curiosos fatos sobre Jesus relacionados a esta questão: ele não era submisso aos seus líderes judaicos religiosos; não se importava de fazê-los passar vergonha em público; ousava trazer interpretações novas a algumas questões religiosas aparentemente já “resolvidas” há alguns séculos (p. ex., o caso da guarda do sábado). Jesus era completamente subversivo!
Nos tempos de Jesus (e o quadro não está diferente do panorama dos nossos dias) a “verdade” sobre qualquer assunto era proporcional a qual autoridade a sustentava. Se um sacerdote dissesse que o relacionamento com os gentios era algo ruim, isto era verdade até o momento em que um sumo sacerdote o contradissesse, e ensinasse as pessoas a fazer o contrário. O “peso” da verdade era proporcional ao status de quem a afirmava. Hoje em dia isto o quadro não é muito diferente. Recentemente, na universidade, eu respondi “Depende” a uma pergunta feita por um professor, e sua tréplica irônica foi que apenas pós-graduados podem dizer “depende”. Ao escrever um artigo científico, se você não possui doutorado na área em que você está escrevendo você não pode dizer “eu observo”, mas “observa-se”; você não pode dizer “eu acredito”, mas “acredita-se” – sempre se sustentando sobre o que alguma “autoridade” já disse sobre o assunto.
Enfim, naquele tempo (que é um tempo idêntico ao nosso, neste sentido) em que a verdade não significava necessariamente “acordo com a realidade”, e sim “acordo com a autoridade”, Jesus, de forma completamente subversiva, questionou pontos sociais, políticos, culturais e religiosos, mesmo não sendo (como homem) “autoridade” sobre nenhuma destas áreas.
É por esta razão que os chefes dos sacerdotes e dos escribas questionaram Jesus sobre qual era a autoridade que estava sobre ele. “Dize-nos, com que autoridade fazes estas coisas, ou quem é que te concedeu esta autoridade?” (Lc 20:2). Jesus jamais respondia a este tipo de perguntas, a não ser com outras perguntas (Lc 20:3-8). Em outra feita os fariseus acusaram Jesus de realizar todos os sinais e maravilhas em nome de Belzebu (Mt 12:24). Existia apenas uma cadeia de autoridade: aquela cadeia à qual os fariseus faziam parte. Como Jesus atuava à parte da cadeia de autoridade oficial, a única conclusão à qual os fariseus poderiam ter chegado é que estava agindo sob autoridade do “príncipe dos demônios”.
É interessante notar que, conforme os evangelhos, Jesus fugia dos títulos de autoridade que eram atribuídos a ele. Geralmente isto não é comentando quando se fala sobre a “autoridade” de Jesus. (Eu mesmo só fui perceber isto na última semana.) Apenas para citar um exemplo, após Pedro chamar Jesus de “Cristo, o filho do Deus vivo” (Mt 16:16), Jesus “proibiu severamente” Pedro e os demais discípulos que contassem sobre isto ao povo (Mt 16:20). Alguns “por que?” podem surgir aqui. Por que Jesus, sendo o próprio Deus encarnado, não fez uso de sua autoridade e de sua soberania para convencer mais pessoas sobre o Evangelho? Por que Jesus, sendo a encarnação do Deus soberano, ao ser questionado com tanto sarcasmo por parte dos fariseus, não respondeu que a autoridade sobre a qual ele ensinava e curava era a autoridade do próprio Criador?
Em certa feita, enquanto discutiam com Jesus, os fariseus pediram a ele um sinal dos céus. Um sinal, obviamente, que desse sustentação ou autoridade a tudo o que Jesus estava ensinando ou realizando. Seria muito fácil a Jesus mostrar tal sinal e evitar a ele algumas dores de cabeça. Sua resposta, no entanto, foi: “Por que esta geração procura um sinal? Em verdade vos digo que a esta geração nenhum sinal será dado” (Mc 8:12).
A resposta é a estas questões simples: Jesus acreditava que a autoridade da verdade encontra-se na própria verdade. A verdade é seu próprio árbitro. Ela não precisa de nenhuma autoridade externa que a sustente, nem é necessário que algum sinal a confirme. O ser humano tem livre acesso à verdade, sem precisar se submeter a nenhum julgo de autoridade.
Albert Nolan disse corretamente que,
Não há nada menos autoritário do que as parábolas de Jesus. Seu único objetivo é levar o ouvinte a descobrir algo por si mesmo. Não são ilustrações de doutrinas reveladas; são obras de arte que revelam ou descobrem a verdade sobre a vida. Elas despertam a fé do ouvinte, de modo que ele possa “ver” a verdade por si mesmo. É por isso que as parábolas de Jesus sempre terminam com uma pergunta explícita ou implícita a que o ouvinte precisa responder por si mesmo: “Qual dos três, em tua opinião, foi o próximo” (Lc 10:36); “Qual dos dois o amará mais?” (Lc 7:42); “Que vos parece? Qual dos dois realizou a vontade do pai?” (Mt 21:28-31); “Pois bem, que lhes fará o dono da vinha?” (Lc 20:16).(NOLAN, Albert. Jesus antes do cristianismo. São Paulo: Paulus: 1987. p. 178.)
Philip Yancey observou o curioso fato que das 153 vezes que alguém foi até Jesus com alguma pergunta, em 147 vezes ele respondeu fazendo outra pergunta (Fonte).
Em suma, não é a autoridade que contém a verdade; é a verdade que contém toda a autoridade. Indo um pouco mais além, enquanto estivermos sob o julgo da tirania da autoridade estaremos espiritualmente presos (Mc 12:42); só estaremos livres se conhecermos a verdade (Jo 8:32). O Evangelho, assim como qualquer proposição verdadeira no universo, não precisa de nenhuma autoridade externa que lhe sustente, não precisa de nenhum sinal que lhe confirme, muito menos precisa que pessoas o enfeitem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário